quarta-feira, 26 de novembro de 2014

O melhor da vida é de graça

Há uns anos assisti a um filme que mudou meu jeito de olhar o mundo. O fabuloso destino de Amélie Poulain conta como a vida de alguém pode mudar a partir do momento em que ela repara nos pequenos prazeres da vida. Amélie, a protagonista, gosta de enfiar a mão num saco cheio de grãos e de quebrar a casca do crème brulée com a colher antes de comer. Amélie é como eu e como você.

Quem nunca reparou nos formatos conhecidos nas nuvens? E quem não é louco por estourar plástico bolha? Os amantes de futebol devem concordar que é muito melhor ver o momento exato do gol e não o replay. É aquela graça e charme contidos num momento efêmero.

Cheiro de livro recém-comprado ou de grama recém-cortada. Quando o ônibus para na sua frente em um ponto lotado. Pisar descalço na grama e sentir as milhares de folhinhas fazendo cócegas nos pés. Ouvir o barulho do mar batendo nas pedras. Estalar todos os dedos do pé ao mesmo tempo.

Deitar a cabeça no colo de quem se gosta e receber cafuné. Zapear os canais da TV e achar seu filme favorito passando. Melhor ainda se estiver no começo. Gostar de uma música na rádio e o locutor dizer o nome logo após. Achar dinheiro no bolso da calça. Dançar com os pés em cima dos pés do seu par.

Passar cola de isopor na mão e esperar secar pra poder tirar. Enfileirar dominós só pela graça de derrubá-los. Ver um dos primeiros flocos de neve cair e derreter. Ver o céu parecer aquelas garrafinhas com areia na hora do pôr-do-Sol. Raspar a panela do brigadeiro. Terminar de ler uma crônica.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Se: partícula apassivadora

Todo mundo tem um ponto da vida em que se pergunta como seria o presente, se no passado tivesse tomado decisões diferentes. E se tivesse escolhido outro curso na hora de prestar vestibular? E se nem tivesse prestado vestibular, tivesse ido viajar? E se nessa viagem conhecesse o amor da vida? E se o amor da sua vida, na verdade, estivesse naquele bar que você deixou de ir ontem? E se...

“Se” é advérbio de condição. Condiciona você a uma vida de incertezas e reconsiderações. “Se” é partícula apassivadora. Ou seja, de gente passiva. Usada quando se olha pro passado e reflete-se sobre o que devia ter sido feito, mas não foi. "Se" é índice de indeterminação do sujeito também: tira a determinação de viver do sujeito dono de sua vida.

Viver a vida projetando um futuro de “E se...” é uma ironia infeliz. É passar a vida pisando em ovos com medo de fazer algo e se arrepender e, no futuro, se arrepender por não ter feito. É viver pela metade. É a mesma coisa de querer comer chocolate e comer uma barra diet. Só pra matar a vontade, sem sentir prazer. Não vale a pena.

Tem até ditado popular sobre isso: é melhor arrepender-se por ter feito alguma coisa, do que por não ter feito nada. Pelo menos quem se arrepende por ter feito, tem história pra contar, tem memórias diferentes umas das outras ao invés de dias monótonos, todos iguais. Quem se arrepende por ter feito pode, das duas, uma: pedir desculpas ou dar de ombros, afinal, já foi feito, não tem como mudar. Ambas as opções deixam a mente leve.

E se o "se" condicionar uma situação diferente? E se mudar? De preferência rápido. Já disse Adriana Calcanhotto: “Vambora, que o que você demora é o que o tempo leva”.

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Vendem-se sonhos

Voltando da casa de uma amiga minha, passei pelo meio da Feira do Carrasco na Hora do Grito, que é no fim da feira, quando tudo fica mais barato pra vender mais rápido. Envolvida pelo tumulto, escutei um diálogo: uma moça de uns 16 anos conversava com a amiga enquanto comprava peixe.

- Não, mulher, eu que não quero mais namorado na minha vida. Só dá trabalho.

A mulher da barraca aproveitou pra vender o dela: - Pois leve esse aqui, esse namorado tá bom todo.

Daí, me imaginei em outro tipo de feira: e se o que estivesse a venda fosse uma vida amorosa perfeita? Na qual você pudesse escolher a dedo um novo amor e os sentimentos que sentiria?! Tudo sem dificuldades pra vida dar certo. Em vez de gritar "Cacho de banana é um real, é um real!”, seria mais ou menos assim:

"Namorado novo, 1.80, loiro, moreno ou ruivo. Tem liberal e tem ciumento. Carinhoso e cafajeste, daqueles que faz sofrer bem muito. É pra aproveitar! Tem também pra botar chifre: pague um e leve dois!". E as ervas? Pode dizer adeus ao boldo, camomila e mastruz.

Teria chá pra tirar saudade e o bom chá pra curar dor de cotovelo. Chá que impedisse de adoecer de tristeza e de bônus, ainda amenizaria aqueles sintomas que sempre vêm com uma crise de choro: dor no peito, nariz escorrendo e olhos inchados. Infelizmente, eles ainda teriam gosto ruim, porque, segundo minha avó: “Só remédio amargo é que cura”.

Outros problemas facilmente resolvidos seriam mão suada e coração acelerado-parece-que-vai-parar, sintomas de quando você fica nervoso. Esse momento é justamente o que o "pretendente” aparece na sua frente. Seriam eficientes e sem efeitos colaterais. A vida seria bem mais simples.

Já perto do fim da feira, um carro de vender cd toca um forró a todo vapor e um casal dança perto. “Saudade inté que assim é bom, pro cabra se convencer que é feliz sem saber”. Talvez a gente tenha que sofrer pra poder sentir melhor os bons momentos. Talvez sonhos perfeitos não sejam vendidos porque essas desventuras é que são o tempero da vida.

domingo, 29 de junho de 2014

Se a saudade é maior que a distância

A perna que apoia a coxa bate insistentemente no chão. Toc toc toc toc faz a sapatilha rosa no piso de madeira. Ele estava atrasado. Após os olhares tortos do senhor sentado à mesa ao lado, resolveu esperar quieta. Como será que ele estava após tantos anos? Com certeza com a barba grande. Engraçado. Nele, ficava perfeitamente bem.

Ele chegou desfilando, felino, cabeça baixa e os olhos levantados. Atento, reparou na saia, na blusa e no sorriso. Ou talvez estivesse só analisando a presa. Ela nunca saberia. Chegou tímido, sentou, parecia que até que não eram próximos. Bastaram alguns minutos pra que tudo voltasse ao normal: eram eles dois novamente. Como se nem tivessem se separado.

Pareciam estar num livro: Memórias de Um Sargento de Milícias, entre um “beliscão e uma pisadela” se via amor. Amor porque a semelhança entre um beliscão e um amor arrebatador é que ambos deixam marcas e talvez, mas só talvez, essa fosse a intenção deles. Ele ia pra longe e ela ficaria. E as marcas também.

Ou só pareciam duas crianças. Quê é mais puro que amor infantil, primeiro amor? E essas coisas que nos atingem sem nem sabermos como começou e o que é. Andaram e riram e conversaram amenidades e tantas besteiras e mesmo com tantos “es”, não se cansaram.

Ela podia passar a tarde inteira com a cabeça no ombro dele, com a barba dele roçando na sua testa. Aproveitando as brincadeiras pra segurar sua mão. Ou fazendo nada, como na maior parte do tempo. E ele sabia disso. E ele gostava que ela fizesse isso porque realmente queria fazer.

No dia que ele foi viajar, ela o acompanhou à rodoviária. Ela saiu da casa dela e ele da dele. Apostaram corrida, ambos não querendo chegar, ambos querendo que o tempo parasse. O prêmio seriam dois abraços. Eles chegaram ao mesmo tempo, esperaram e quando a voz poliglota anunciou que o ônibus sairia nos próximos 15 minutos, ela o deixou na área de embarque. Hora de entregar o prêmio ao vencedor.

“Como se dá dois abraços quando a gente não quer se separar?”, ele disse.

E se separaram. Ele a beijou na testa e disse que eles se veriam quando ele voltasse. Ela o mandou ir andando antes porque não gostava de dar as costas à felicidade. E ele foi. Ela deu meia volta e andou rápido.
Ao chegar à parte envidraçada da rodoviária que dá perfeita visão da área de embarque, virou-se. Ele a observava. Acenou e foi embora. Ela não disse adeus. Porque dizer adeus seria colocar um ponto final num sonho. E ela não queria acordar.

sábado, 8 de março de 2014

Sobre o dia internacional da mulher

Feliz dia da mulher. Pra todas, mas principalmente pras que fazem jus ao dia da criação dessa data.


Falo das que lutam para ter um salário igual ao de um homem que desempenhe a mesma função que a sua. Das que lutam pelo respeito que seu intelecto merece independente de vestirem minissaia ou burca. Das que lutam pelo respeito que seu corpo merece independente de saírem de casa as 0h e voltarem as 5h.

Feliz dia da mulher praquelas que não aceitam o que a mídia diz que é bonito e se valorizam, independente de raça, tipo de cabelo e peso. E um dia ainda mais especial pras que, além de valorizarem a si, valorizam a mulher ao seu lado, sem chamar de puta a coleguinha que transa quando quer, porque sabe que o corpo e a decisão são dela.

Falando em valorizar a si mesma, feliz dia da mulher pra quem escolheu não se depilar mais porque “isso é coisa de uma sociedade opressora e ditatorial sobre a aparência da mulher” e pra quem quer continuar fazendo chapinha e usar silicone porque beleza é subjetivo e é assim que ela se sente bem. Porque elas, ambas, são livres e podem fazer o que quiserem com seus corpos.

Feliz dia da mulher pra mulher que é dona de casa e tem que cuidar de 10 panelas, 5 filhos e um marido. Mas que fez isso por escolha e não por pressão. E sobre escolha: feliz dia da mulher pra quem escolheu não ter filhos e marido, porque a vida é dela e não de uma sociedade vendedora de família de comercial de margarina. Pras engenheiras, motoristas, cabeleireiras, dançarinas de boate, vendedoras, presidentas e professoras que sustentam e cuidam de si próprias, feliz dia.

Feliz dia da mulher às que tem coragem de denunciar o marido/namorado/pai/irmão que cometem violência doméstica ou sexual. Mais difícil que denunciar um cara desconhecido de uma van é denunciar alguém de dentro da sua casa. E feliz dia da mulher aquelas que ajudam as que ainda não tiveram essa coragem, sem julgar, só pelo apoio. Pras mulheres que não denunciaram ainda, felicitações e uma dica: saibam que a culpa não foi sua, nem do decote que você estava usando.

É, principalmente, pra essas mulheres que desejo um dia feliz, pras que entendem o significado da morte de centenas de mulheres no dia 8/03/1857 na fábrica de tecidos em Nova York por lutarem por seus direitos trabalhistas e humanos. Como elas, façamos valer nossas opiniões e exijamos respeito e igualdade acima de tudo, todo dia.

PS. Pra quem, infelizmente, continua acreditando que o dia da mulher é só sobre ser feminina e nem imagina que existe o “feminismo”... Procure se informar e tenha um bom dia.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Madalena

Madalena cruzava a Avenida a pé às 4h da manhã. Carregava na mão direita os sapatos dourados de salto e na mão esquerda uma bolsa pequena com o celular, a carteira de identidade e o dinheiro do táxi que não pegou. Preferiu guardar o dinheiro pra próxima festa e caminhar. Já que fazia uma noite tão estrelada, aproveitaria! “Por que não?” E a lembrança da pergunta que se fez no início da noite ecoou: Por que não aproveitar?

O vento balançava sua saia vermelha quando ela fechou a porta. Ao sair de casa, ouviu a voz da mãe perguntando aonde iria. Não sabia dizer. Só sabia que tinha que sair sem olhar pra trás pra sossegar. As quatro paredes que sustentavam sua casa agora pareciam encolher sobre sua cabeça. As luzes da rua a chamavam e os sons de carro passando eram alimento pra sua alma frenética.

Entrou no primeiro bar que o movimento parecia bom, abriu a primeira cerveja e é aqui que começa a noite. No fundo do copo, o reflexo de seus pensamentos que precisam de ordem. Desprevenida, ela se afoga como se uma onda a tivesse pego num caldo, é fácil se perder entre os problemas quando se está só. Balança a cabeça e pensa: "Meu problema é que eu não consigo parar de pensar". Olhando ao redor, tanta gente conhecida. Encontra uma amiga da faculdade e ela lhe fala de uma festa na casa de um amigo. Pra lá elas vão.

No carro, toca algo que faz as janelas estremecerem e o coração acompanhar a batida do bumbo da bateria. Param no posto de gasolina, compram um litro de vodca e seguem. O mesmo vento que balançou a saia entrava agora pela janela e esvoaçava os cabelos. Olhando os pneus girarem e as casas ficando pra trás, ela se lembrava de tudo que havia deixado no passado. Pra Madalena, o bom da vida é viver sem saber o que é bom ou mau, só sabendo o que quer, fazendo as regras do seu jogo e quem quiser, que jogue junto. Chegam ao apartamento do amigo da amiga da faculdade, apartamento pequeno num bairro nobre, cheio de gente, do jeito que é bom.

O zumbido das vozes, a música alta, meia carteira de cigarros e uma caixa de cerveja depois, ela esqueceu. Anestesiou-se de tudo na varanda do décimo terceiro andar, de onde se tem uma bela vista da cidade. As luzes das casas ainda acesas levaram seus pensamentos em cada janela iluminada, em cada vida que era completamente diferente e numa hipótese de como seria sair de si mesma e entrar noutra vida, mais fácil, menos conturbada. Precisava de outra cerveja, já estava cansada desse "lembra-esquece" de problemas.

Dentro da casa, seus pés se movem com o som enquanto procura quem irá guiá-la esta noite. O mais interessante estava encostado na parede, alto, moreno, cara de vocalista de banda de rock britânica. Pelo que sabia, era o fornecedor da noite. Ouviu os amigos falarem algo relacionado a ecstasy enquanto dançava por perto e sorriu. Achado.

Conversa vai, após saber que Heitor acabara de voltar de um intercâmbio, uma pílula depois e risadas e gemidos, ela estava deitada sobre o ombro dele na cama, do outro lado da cidade. Pelos seus pensamentos sóbrios percebeu que está sozinha, mesmo quando acompanhada. Mesmo com ele ao seu lado, mesmo com qualquer alguém ao seu lado. Dentro dela, ela sempre estaria só. Levantou-se se cobrindo com o lençol e foi para o banheiro. Nem se encarou no espelho, vestiu-se e partiu. Ele dormia serenamente, melhor não acordá-lo.

Daí chegou à Avenida, resolveu tirar os sapatos pra caminhar melhor. No caminho de volta pra casa, resolveu voltar a si. Percebeu que essa necessidade de adrenalina, essa necessidade de sempre precisar de alguma coisa, nada mais era do que sua alma gritando por preenchimento. Tinha tudo, mas algo sempre estava faltando. E a sensação de complemento, mesmo que momentâneo, era viciante.

O sol chegava ao céu quando Madalena chegou em casa. Ao entrar, beijou a testa da mãe que dormia no sofá da sala. Passou pro quarto e jogou-se na cama. Dormiu de saia vermelha, sapato dourado na mão e barriga vazia. Entretanto, com o peito cheio.