sábado, 28 de setembro de 2013

Preto e quente ou Mnemotécnicas da dor

Ela pegou a xícara da pia sem segurar na asa. No segundo seguinte, largou no susto e a viu quicando no chão com o impacto. Não quebrou, mas rachou. A mão ficou vermelha. O café se espalhou lentamente pelo piso formando dedos compridos de gotas e foi parar debaixo da geladeira. Iria dar trabalho pra secar.

Colocou a mão debaixo da torneira aberta pra aliviar a queimadura. Enquanto a água corria por entre seus dedos, os pensamentos voltavam pra quando tudo começou. Os sons, as luzes e a batida inebriante que se misturavam com a fumaça dos cigarros ao redor. O show foi inesquecível, mas não pela música. A maior parte das lembranças que ela tinha desse sábado de setembro tinha relação direta com Ele. Sejam as lembranças boas ou as ruins.

Catou a xícara do chão, pegou um pano, abaixou-se e limpou. Pegou outra xícara, pegou o bule e colocou mais café. Ela é do tipo que não desiste na primeira derrota. Dessa vez, segurando a xícara pela asa, levou a porcelana aos lábios entreabertos. Desnorteada pelo ardor na mão, queimou a língua. Incrível como uma coisa que machucara há pouco é tão facilmente esquecida. Como se nem tivesse acontecido.

Isso de esquecer fácil já nasce com o ser humano. Desde crianças somos apresentados a esse método de superação. Você cai da escada, sua mãe assopra seu machucado, mas depois de 10 minutos de choramingar, você volta pro topo da escada. Parece que as lembranças ruins são voláteis, enquanto que as boas grudam como solda no seu cérebro.

Ela nem se dá conta e do nada, as lembranças que mantém tão escondidas no fundo da sua alma invadem seus pensamentos. Ah, seus pensamentos... Se fossem só eles. O cheiro do perfume e de cerveja, o contato do abraço, dos lábios contra a bochecha, da barba contra a pele. É como se seu corpo necessitasse do contato.

Mas, apesar da existência desse novo contato tão necessário, o desenrolar do enredo é exatamente igual ao anterior. Com lembranças ruins. E ao que Nietzsche disse: “apenas o que não cessa de causar dor é que fica na memória”, ela rebate com: o que fica na memória é o que te faz bem, as lembranças que causam dor são facilmente esquecidas para que se dê de cara com a parede muitas e muitas vezes.

A mão ainda doía, mas a língua doía mais. É como aquele ditado que diz que pra parar uma dor, é só sentir outra. Acredito que isso também funcione com relacionamentos: pra esquecer a dor de um, só colocando a dor de um novo por cima. É um ciclo vicioso.

Ela despejou o café na pia e resolveu beber chá.